O casarão e a bravura de Zé de Melquiedes.
Por Aurivânio Andrade.
Hoje, ainda é comum na já
modificada paisagem do sertão, visualizarmos antigos casarões, que sobre os
olhares dos visitantes, dos curiosos ou dos passageiros continuam atestando os
mistérios, os encantos e as belezas do sertão. O mesmo sertão da sofrida canção
do poeta Elizeu Ventania, das
histórias de fé e de crença do Arraial de Canudos que tinha como líder religioso o
beato Antônio Conselheiro, da letra
da música “Asa Branca” de Luiz Gonzaga
e de tantos outros que retrataram com suas músicas, com suas canções, o modo de
falar de sua gente e de viver de seu torrão. Refiro-me ao sertão abandonado e
desprezado pelas novas gerações. O sertão dos monumentos histórico/culturais
deixados pelos nossos antepassados, que apesar da "agonização" latente, alguns se
matem até hoje, denunciando o desprezo e sepultando as “istórias” dos seus donos. Mas o sertão que eu quero descrever, não é
qualquer sertão, não. É o sertão do sopé das serras de Portalegre e de Martins.
Ambas de climas agradabilíssimas. A primeira é a minha terra natal. A segunda é
filha primogênita desta. Mas o meu foco principal, é a MINHA VIÇOSA e o meu povo. O lugar que NÃO escolhi pra viver a
minha infância, mas escolhi pra viver a infância dos meus filhos e a sepulturas
dos meus mortos. Inclusive a minha.
Viçosa,
assim como outras cidades, sítios e fazendas do nordeste, teve também seus
casarões. Dentre eles, testemunhei de perto, o de Maria Luzia, o de Antônio
Faustino, o “Chico Pedro”, o “Chico de Alencar”, o de Horácio Turíbio, o de Ozéas Pinto, as “casas da barra” de Mariana
Alencar e de Ananias Mafaldo e
tantos outros que me foge a memória agora. Todavia, tem um que convivi mais de
perto e nele pude comprovar a “valentia”
do seu dono e a generosidade de sua amada. Estou falando do casarão de Zé de Melquiedes e de sua esposa Júlia Dionise, a qual eu a chamo
carinhosamente de “Julinha”.
O casarão de Zé de Melquiedes se distingue dos demais por dos fatores: Um que
nos traz tristeza e o outro que nos traz recordações e saudades das “istórias”
e da “valentia” do seu dono. Omitirei os fatos do primeiro, por dois motivos:
Primeiro porque não pedi autorização à família para narrar o que acontecera lá.
Segundo porque são fatos tristes e que a família não merece reviver o enredo
outra vez. Então, só me resta falar do segundo. E falarei para manter viva na
história do meu povo, uma vez que quase nada sabem do passado, talvez por
ignorarem ou por não terem quem lhes contem! Eis aqui um pouco das “istórias”
de um dos homens mais “valente” da
minha cidade que conheci. Conheci e convivi.
Zé de Melquiedes era um homem corpulento, de uma estatura alta, cor
morena, muito religioso, pacífico por fora, mais valente por dentro. Isso
mesmo. Quem o visse, não sabia quem o era. O seu casarão funcionava como
pensão, ou seja, uma espécie de pousada e/ou hotel. Quem chegasse à sua casa,
não saia de barriga vazia e nem dormia pelo chão. Mesmo que vinhessem do litoral
ou que morassem no sertão. Aliás, esse ato de generosidade ainda se mantém até
hoje. Certa vez, Anastácio, um amigo
meu que não tinha para onde ir depois de ser expulso da casa de seus pais/avós,
passou a conviver na casa de seu Zé de
Melquiedes. Num certo dia, por volta da meia noite, o mesmo me relatou que
em determinada noite, sentia uma dor de dente muito grande e passou a
chamar pelo nome do cão, do satanás altas horas da noite. Seu Zé, como nós o
chamávamos, era um homem EVANGÉLICO
muito reacionário e conservador, e ouvindo aquelas palavras, lá do seu quarto
logo indagou: “Quem é esse “animal” que está
falando no nome do sujo uma hora dessas aí?” Nessa, o silêncio
voltou a reinar naquela hora. O silêncio e a dor. Mas só por alguns minutos,
porque como a dor de dente era grande, Anastácio
voltou a chamá-lo pelos nomes dos “ditos
cujos” outras vezes. Em uma dessas ocasiões, seu Zé se levantou da sua cama
e foi até a sala onde se encontrava Anastácio,
e novamente indagou: “O
que é que você tem menino que está chamando pelo nome do sujo uma hora dessa”?
Anastácio desesperado, com a cara de
choro e com medo de ser repreendido pelo dono da casa, disse: “Seu Zé, eu tô que não aguento mais. Tô com
uma dor de dente que estou vendo hora sai correndo”. Nessa, seu Zé como já tinha passado
por situações idênticas, e sendo sabedor do tamanho da dor, foi generoso com
Anastácio, esqueceu a religião e seus conceitos e disse: “Meu filho, isso é um dor amaldiçoada, isso é uma dor do cão dos
inferno” e continuou o resto da madrugada sendo solidário com o
seu hóspede.
Certa vez, um jumento mordeu um dos seus
filhos. O filho caçula de nome Manoel
Neto. Quando seu Zé soube da notícia, ficou desesperado, saiu atrás desse
jumento de mata adentro, até encontrá-lo. Encontrado o animal e depois de tê-lo
surrado bastante, esfregou uma das mãos várias, e várias vezes nos dentes do
jumento e em voz alta, para que os presentes ouvissem, começou a gritar: “mim
morda D’iabo Mim morda seu amaldiçoado”. Pra infelicidade do jumento ou que fosse pra felicidade de seu Zé, o jumento que “de jumento nessa hora não tinha nada” acabou NÃO lhe obedecendo.
Outra vez, seu Zé estava ajudando a seus netos
nos descarregamento de um caminhão de tomates na cidade de Santo Amaro/SP, nessa ocasião, um dos seus netos, faltando o
respeito com o mesmo, jogou um tomate podre em seu Zé. Seu Zé ficou pirado da
vida procurando saber que tinha sido aquele moleque que tinha feito aquilo com
ele. “Vou matá-lo! Vou matá-lo! Se eu souber quem
foi vou matá-lo agora! Não tem conversa. Quem foi de vocês que fez isso.”
Dizia seu Zé com a voz tremula. Os moleques sabendo da valentia de seu Zé
ficaram calados sem revelarem o nome do “sortudo”
daquele dia. Tempos depois, eu conversando com seu Zé, “puxei” por esse assunto
e ele acabou me relatando dessa grande raiva que teve. Como já fazia mais de 05
anos que acontecera esse episódio, resolvi revelar quem tinha sido o autor
daquele ato. “Seu Zé, sabe quem foi que
jogou o tomate no senhor, foi seu neto Marcio”. Nessa, seu Zé
arregalou os olhos pra mim frigiu o coro da testa e disse-me: “A se eu descubro naquela hora, meu filho. O
desmantelo estava feito meu filho.” Eu mais uma vez disse: “Mais seu Zé, você ia matar seu neto”. Seu Zé dessa vez com a voz já um pouco alterada respondeu: “Não tinha conversa não, ia
matá-lo. Podia ser quem fosse. Estava disposto a matar, podia ser meu filho”.
Seu Zé era assim: Um homem simples, mas de uma valentia já mais vista.
Seu Zé, como eu gostava de
chamá-lo, foi um dos homens mais valente que conheci e convivi na minha
adolescência. O mesmo apesar de ter trilhado por logos caminhos, por longas
estradas, deu seu último suspiro aos 80 anos de idade no banheiro do seu próprio casarão
nos braços de uma MULHER.
Taí o texto nº 10.
“Farejando” as “istórias” do meu povo e resgatando as Histórias do meu sertão.
Boa reflexão!
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